Não quero me isentar dos
meus erros. Digamos que tive setenta por cento de culpa com a separação. Eu
posso medir neste momento minha parcela. Mas só quando estou calmo eu penso
direito. A raiva que senti era tão forte que poderia destruir a face do mais
infernal dos espíritos macabros; poderia sair correndo por quilômetros para me
fazer cansar e mesmo assim o ódio ainda encontraria mais força física para
consumir e continuar vivo aqui dentro, sugando cada suspiro de cada centímetro
de meu tecido adiposo, fazendo escorrer um suor carregado de cheiro masculino
infestado de testosterona, maculado com a pura vontade de matar, esquartejar,
trucidar, estripar cada cara parte de meu inútil cérebro. A raiva às vezes age
sob mascaras, e faço aquilo que ela me faz acreditar que é melhor, que vai me
fazer feliz. Mas a experiência já provou que essa é uma ilusão tão grande e tão
forte que é capaz de penetrar nos olhos mais mansos e pacatos de forma a
deixá-los presos em momentâneas miragens de relaxamento, paz ou felicidade.
Erro que nós jamais poderemos nos remediar. Afinal, cada um tem uma dose certa
de raiva para atingir o limite. Uns são mais voláteis que outros. E foi nesse
ponto de saturação que a raiva vestiu seu mais terrível traje: O cinismo e
suposta calma. E imbuído por uma bela destreza com a indiferença sarcástica,
foram jogados ao precipício 10 anos de um casamento sem filhos.
Cômico, se não trágico, ver o que acontece todas as vezes que eu me encontro
com ela. Desde o dia fatídico, foram três. Essa seria a quarta. Sentados numa
sorveteria, a pedido dela, para que mais uma vez conversemos. Apesar de minha
calma constante, acho inconstante como a própria calma é impaciente em
descansar no meu corpo quando me encontro com ela. Ela ia falando, eu seguia
respondendo e indagando, e ela retrucava, eu exclamava. Enfim, vários tipos de
pontuações foram postas. “Eu não vou lhe entregar a casa e ponto final!” (veja
que bonito: duas pontuações usadas seguidas, não tendo nada a ver uma com a
outra). “Oras, a casa é minha ou andaste bebendo?”, “quando éramos casados em
nada apreciavas olhar em mim”, “Lembra do que você fez com a frigideira...?”.
Foram lembradas várias histórias nossas, e eram jogados na cara nojenta um do
outro. Em qualquer outro momento do passado riríamos dessas anedotas. Gostaria
de descobrir em que momento o casal começa a se perder, a não se reconhecer
mais. Conforme as palavras iam atravessando o vácuo entre nossas bocas, eu pude
ver as expressões de raiva em seu rosto. Era tudo tão expressivo, que ela
conseguiria transparecer a cem metros de distância seu nojo. Seu olhar era
incisivo, fixos aos meus olhos, tinha a impressão de que ela soltava flechas
por eles e os atingiam... bem fundo. A pele branca familiar dilatava-se da
tensão criada pelo seu nariz enquanto se crispava, assim como sempre ocorria
quando ela sentia repulsa por algo. O rosto que ela fez assim que me conheceu.
Parece controverso que o amor de uma vida inteira por dez anos tenha dado um
olhar enojado para seu futuro marido assim que o conheceu. Mas muitas das mais
incríveis histórias de amor começaram com casais que não se gostavam. Eu acho.
De minha vida resumo aqui o que aprendi: Casais ocidentais do início do século
XXI, terceiro milênio após Cristo, são casais cheios de amor, excitação e
paixão no começo de seus relacionamentos. E isso pode ser estável enquanto
durar, mas o tempo é fiel em suas promessas e cumpre seu trabalho com
perfeição. Alguns anos vão passando e o que chega é um período de grande
conflito entre o casal, num momento em que eles já se conhecem de formas bem
íntimas, já viram os monstros de cada um, suas particularidades, suas
futilidades, necessidades e pontualidades. Neste momento, esse período de
conflitos do casal se equipara ao “entre guerras”: Pequenas coisas vão
acontecendo, outras um pouco maiores, mas todas elas convergem para um lugar
comum, que todos sabem que vai chegar, inexoravelmente, e se preparam para
esses períodos, esperando seu estopim. E se dá enfim o assassinato do tio Chico
e com ele começam as guerras. Anos vão passando, aquele conflito passou, mas as
mágoas estão plantadas, e vem a grande guerra. Devastadora. E chegamos a um
ponto crucial. O casamento vai sobreviver a campos de concentração de palavras
de ações passadas? A morte de milhões e milhões de noites de amor? Aos
territórios sorridentes devastados? Se sim, o casal está realmente pronto para
passar o resto da história juntos. Como amigos, companheiros de casa, colegas
de quarto, um amor não mais de homem-mulher, mas de grandes amigos. Isso é o
relacionamento de pessoas com idades e relacionamentos avançados.
Se não, o que vem depois do termino da segunda guerra? Ora, estou bem ali.
Vivendo a cortina de ferro. A frieza. Calado e ouvindo-a falar, achei graça.
Não havia conseguido vencer a guerra. Mas a verdadeira, aquela que nos faz
ficar juntos por todo o infinito até o fim. Naquele momento, a raiva não
conseguiu mais me iludir e fiquei só olhando para ela, que percebeu, calou-se e
retribuiu o com o mesmo olhar que eu lançava a ela, talvez tenha percebido,
talvez estivesse pensando o mesmo que eu. Dizem que algumas mentes de almas
gêmeas estão conectadas de alguma forma. Será? Eu não podia mais decifrar seus
olhares, suas expressões já eram estranhas a mim. Mas mesmo assim era tudo tão
próximo, familiar. O muro havia ido abaixo. Mas o futuro não seria como há
séculos atrás. Seu belo rosto branco parecia triste. Ela estava mesmo? Ou seria
uma nova ilusão, aquilo que meu cérebro queria acreditar. Ela não usava mais a
aliança e a carne de seu dedo mostrava a marca de um anel que fora tirado há
pouco tempo. Eu pus a mão no bolso e peguei minha aliança, e o mostrei a ela, o
coloquei em cima da mesa e o cobri com minhas mãos, queria protegê-lo. Ela pôs
suas mãos finas, cumpridas e quentes na borda da mesa. Pela primeira vez ela
desviou seu olhar de mim, fitando nossas unhas. Acredito que ela queria de
colocar suas mãos sobre as minhas, mas não teve coragem. Tirei minhas mãos da
mesa, levando a aliança novamente ao bolso e dei um leve e contido sorriso. Ela
não. A dúvida ainda me doía. Ela estava pensando o mesmo que eu ou era
impressão tendenciosa minha? Eu me levantei, andei alguns poucos passos e
falei: “Vou para casa. A chave estará naquele lugar de sempre”. Fui! Na
esperança da não ilusão.