domingo, 26 de agosto de 2012

Até que a guerra os separe


                Não quero me isentar dos meus erros. Digamos que tive setenta por cento de culpa com a separação. Eu posso medir neste momento minha parcela. Mas só quando estou calmo eu penso direito. A raiva que senti era tão forte que poderia destruir a face do mais infernal dos espíritos macabros; poderia sair correndo por quilômetros para me fazer cansar e mesmo assim o ódio ainda encontraria mais força física para consumir e continuar vivo aqui dentro, sugando cada suspiro de cada centímetro de meu tecido adiposo, fazendo escorrer um suor carregado de cheiro masculino infestado de testosterona, maculado com a pura vontade de matar, esquartejar, trucidar, estripar cada cara parte de meu inútil cérebro. A raiva às vezes age sob mascaras, e faço aquilo que ela me faz acreditar que é melhor, que vai me fazer feliz. Mas a experiência já provou que essa é uma ilusão tão grande e tão forte que é capaz de penetrar nos olhos mais mansos e pacatos de forma a deixá-los presos em momentâneas miragens de relaxamento, paz ou felicidade. Erro que nós jamais poderemos nos remediar. Afinal, cada um tem uma dose certa de raiva para atingir o limite. Uns são mais voláteis que outros. E foi nesse ponto de saturação que a raiva vestiu seu mais terrível traje: O cinismo e suposta calma. E imbuído por uma bela destreza com a indiferença sarcástica, foram jogados ao precipício 10 anos de um casamento sem filhos.
                Cômico, se não trágico, ver o que acontece todas as vezes que eu me encontro com ela. Desde o dia fatídico, foram três. Essa seria a quarta. Sentados numa sorveteria, a pedido dela, para que mais uma vez conversemos. Apesar de minha calma constante, acho inconstante como a própria calma é impaciente em descansar no meu corpo quando me encontro com ela. Ela ia falando, eu seguia respondendo e indagando, e ela retrucava, eu exclamava. Enfim, vários tipos de pontuações foram postas. “Eu não vou lhe entregar a casa e ponto final!” (veja que bonito: duas pontuações usadas seguidas, não tendo nada a ver uma com a outra). “Oras, a casa é minha ou andaste bebendo?”, “quando éramos casados em nada apreciavas olhar em mim”, “Lembra do que você fez com a frigideira...?”. Foram lembradas várias histórias nossas, e eram jogados na cara nojenta um do outro. Em qualquer outro momento do passado riríamos dessas anedotas. Gostaria de descobrir em que momento o casal começa a se perder, a não se reconhecer mais. Conforme as palavras iam atravessando o vácuo entre nossas bocas, eu pude ver as expressões de raiva em seu rosto. Era tudo tão expressivo, que ela conseguiria transparecer a cem metros de distância seu nojo. Seu olhar era incisivo, fixos aos meus olhos, tinha a impressão de que ela soltava flechas por eles e os atingiam... bem fundo. A pele branca familiar dilatava-se da tensão criada pelo seu nariz enquanto se crispava, assim como sempre ocorria quando ela sentia repulsa por algo. O rosto que ela fez assim que me conheceu. Parece controverso que o amor de uma vida inteira por dez anos tenha dado um olhar enojado para seu futuro marido assim que o conheceu. Mas muitas das mais incríveis histórias de amor começaram com casais que não se gostavam. Eu acho. De minha vida resumo aqui o que aprendi: Casais ocidentais do início do século XXI, terceiro milênio após Cristo, são casais cheios de amor, excitação e paixão no começo de seus relacionamentos. E isso pode ser estável enquanto durar, mas o tempo é fiel em suas promessas e cumpre seu trabalho com perfeição. Alguns anos vão passando e o que chega é um período de grande conflito entre o casal, num momento em que eles já se conhecem de formas bem íntimas, já viram os monstros de cada um, suas particularidades, suas futilidades, necessidades e pontualidades. Neste momento, esse período de conflitos do casal se equipara ao “entre guerras”: Pequenas coisas vão acontecendo, outras um pouco maiores, mas todas elas convergem para um lugar comum, que todos sabem que vai chegar, inexoravelmente, e se preparam para esses períodos, esperando seu estopim. E se dá enfim o assassinato do tio Chico e com ele começam as guerras. Anos vão passando, aquele conflito passou, mas as mágoas estão plantadas, e vem a grande guerra. Devastadora. E chegamos a um ponto crucial. O casamento vai sobreviver a campos de concentração de palavras de ações passadas? A morte de milhões e milhões de noites de amor? Aos territórios sorridentes devastados? Se sim, o casal está realmente pronto para passar o resto da história juntos. Como amigos, companheiros de casa, colegas de quarto, um amor não mais de homem-mulher, mas de grandes amigos. Isso é o relacionamento de pessoas com idades e relacionamentos avançados.
                Se não, o que vem depois do termino da segunda guerra? Ora, estou bem ali. Vivendo a cortina de ferro. A frieza. Calado e ouvindo-a falar, achei graça. Não havia conseguido vencer a guerra. Mas a verdadeira, aquela que nos faz ficar juntos por todo o infinito até o fim. Naquele momento, a raiva não conseguiu mais me iludir e fiquei só olhando para ela, que percebeu, calou-se e retribuiu o com o mesmo olhar que eu lançava a ela, talvez tenha percebido, talvez estivesse pensando o mesmo que eu. Dizem que algumas mentes de almas gêmeas estão conectadas de alguma forma. Será? Eu não podia mais decifrar seus olhares, suas expressões já eram estranhas a mim. Mas mesmo assim era tudo tão próximo, familiar. O muro havia ido abaixo. Mas o futuro não seria como há séculos atrás. Seu belo rosto branco parecia triste. Ela estava mesmo? Ou seria uma nova ilusão, aquilo que meu cérebro queria acreditar. Ela não usava mais a aliança e a carne de seu dedo mostrava a marca de um anel que fora tirado há pouco tempo. Eu pus a mão no bolso e peguei minha aliança, e o mostrei a ela, o coloquei em cima da mesa e o cobri com minhas mãos, queria protegê-lo. Ela pôs suas mãos finas, cumpridas e quentes na borda da mesa. Pela primeira vez ela desviou seu olhar de mim, fitando nossas unhas. Acredito que ela queria de colocar suas mãos sobre as minhas, mas não teve coragem. Tirei minhas mãos da mesa, levando a aliança novamente ao bolso e dei um leve e contido sorriso. Ela não. A dúvida ainda me doía. Ela estava pensando o mesmo que eu ou era impressão tendenciosa minha? Eu me levantei, andei alguns poucos passos e falei: “Vou para casa. A chave estará naquele lugar de sempre”. Fui! Na esperança da não ilusão.

domingo, 19 de agosto de 2012

Script: assassino silencioso.



O solado de couro tinha pulado do chão, deslizado no ar e pousado num ponto acima. Outros solados foram passando por ele indiferentes, pulando para pontos mais baixos, outros para cima também, nem perceberam. Alguém gostaria muito que uma pessoa sequer não tivesse sido abalada pelo poder crítico furtivo do dono desse calçado social.
Uma luva negra, igualmente encouraçada, balançava como um brinquedo de parques de diversões: “À sua esquerda livre. À sua direita um tipo de estado violência. O doce vão muscular contraído num cabo de borracha”. A luva carregava, à luz do dia, à vista e ao vivo, sem que ninguém notasse, ironicamente, a morte. E ela vinha carregada de experiência, pronta para brincar novamente. Como num ato compulsado, ajeitou os óculos de lentes escuras, escondendo o que vinha por trás dele. Tão focado em seus objetivos, os olhos escondidos se semicerravam. E as escadas iam passando pelos seus pés como se corressem.
No prédio ao lado, O "Um Alguém", talvez um professor, um aluno, um astronauta, um escultor, arquiteto, músico. Não importa. Definitivamente um cadáver adiado, putrefeito da mais perfeita condição humana. Sua mente estava um caos. Sua vida desmoronava. E alguém o queria morto. E alguém seria julgado pela sua morte, mas não o dono das luvas. Nenhuma dúvida, nenhum fleche nas câmeras do edifício, nenhuma testemunha. Era um fantasma, mas um bem vivo e até a sua morte, livre. O "Um Alguém" se sentia em perfeita sintonia com o inferno. Havia perdido sua mulher para sua arrogância, sua frieza era sua maior inimiga, aquela que teima em ir embora. Ela já tinha afastado todos os seus bons amigos e também a mulher que amava e em breve uma frieza muito maior que a dele o mataria. Vítima do agente da vingança alheia. O maior mistério da humanidade seria mostrar uma emoção, aquilo pelo qual ele mais esperava. Não tinha sido o futuro que imaginara pra si anos e anos antes. Quando criança queria ser alguém carinhoso e caridoso, principalmente com os que ele se importava e amava. Imaginava-se namorando uma garota mais velha, que sempre foi a sua fantasia, de uma pele alva como a neve. Muitas vezes brincou consigo mesmo se chamando de racista, por preferir as branquelas às de pele negra ou morena. “Racista, preconceituoso. Volte pro século XVII filho da mãe”. Sempre ria de si. Mas gosto é gosto, e não racismo. Por ironia da vida, casou-se com uma bela morena. Típica mulher brasileira estereotipada das praias do Rio de Janeiro, Bahia e Recife. Mulher que ele nunca trocaria por nenhuma mulher vampiresca britânica, que por um belo acaso era o tipo mais que perfeito; Alá Stoya. Sua mulata o encantava. Sempre se imaginava vivendo uma comédia romântica, em que sua mulher seria tão alegre e expressiva que sua vivacidade ressuscitaria mais pessoas que o messias. Acreditava piamente que essa mulher despertaria nele aquilo que tinha de mais escondido: seu lado piegas. Porém, não há como despertar o que nunca se teve. Seria como figurar o que nunca se viu. Nada disso foi verdade. Relembrava de seus pensamentos de quando jovem e o punha de frente com seu eu atual, aquele que o adolescente sempre quis conhecer, querendo adiar o encadeado. Seu coração bateu tão rápido que pensou que estaria ela numa cansativa labuta, mas era impossível pará-la, afinal percebeu que seu querido e imaturo eu de poucas décadas atrás quis cuspir em sua face, enojado. Desprezado, sentiu-se como o último animal de sua espécie: sozinho. A vida teria brincado com ele do modo mais niquento e desditoso possível.
Sozinho, o precipício do silêncio ao seu redor fazia do eco estremecido de sua voz tácita o único companheiro que latejava no ouvido do homem dos sapatos de couro. Seu terno preto e gravata vermelha estavam impecáveis para o majestoso e funesto trabalho que estava prestes a executar. Sentia-se como um ator. O papel que atuava era a ira alheia. Seu ato era preciso e inexpressivo, incisivo e finalista. Sua performance era traquejada, suave e pronta. Colocou sua maleta prateada num chão empoeirado de uma sala vazia, em frente ao edifício de alguém que em breve iria dormir num cobertor de vermelho quente. Abriu sua pasta. Aquele era só mais um dia em sua vida, só mais um trabalho. Seu desempenho antigo o deixava mais frio. Fora ele criado para ser um assassino. Não tinha mais segurança ou tranqüilidade, tudo era suspeito. Dormia pouco e sem sossego vivia habitualmente cansado e movendo-se sempre. Amou uma vez. Mas seu trabalho a matou. O rifle foi se montando lentamente. O rosto de sujeito estava em sua cabeça. Nenhum motivo além do dinheiro tinha para puxar o gatilho. Este era mais do que suficiente. Era um carrasco, recebeu o papel de cortar a cabeça do réu declarado culpado. O expedidor da morte sentia, lá no fundo, certa identidade com suas vítimas: “próximos demais do outro lado”. Arma pronta. Colocada num pedestal a procura do ângulo perfeito. A calma chocaria toda uma nação. E que rufem os tambores.
                Aquilo estava preso lá dentro, ele sabia que tinha que deixar sair, mas não conseguia. Não sabia o porquê. O quão diferente teria sido sua vida se soubesse ser afetuoso? Infelizmente não importava mais, havia perdido sua mulher, seus filhos não queriam nada com ele. Doía tanto, não era o que ele planejou para si. Tinha acabado de ter uma idéia: deixar fluir. Havia acabado de se levantar do sofá. E não pensava mais em nada. Havia apenas uma cabeça explodida e massa encefálica espalhada pelo chão.
                O tiro havia sido disparado. O cano estava quente. O pequeno furo no vidro no outro prédio não seria notado por ninguém além dele mesmo. Ninguém percebe um defeito tão pequeno a menos que saiba que o defeito está lá. Por outro lado, algum curioso poderia ver o morto. Tratou de desfazer o rifle. Lembrou do movimento do corpo de sua vítima. Parecia um bêbado apagando ou prédio implodindo. Sua maleta já ocultava a extensão de seu corpo. Sua luva voltara a segurar a liberdade e o cabo. Seu solado voltou a pular e flutuar. Sairia pelo mesmo lugar onde entrou. Ninguém jamais saberia quem ele era ou quem efetuou o disparo. O assassino silencioso tinha terminado sua peça. Esperava a próxima. As cortinas foram fechadas e a luz apagou.